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Kung Fu

KUNG FU (GONGFU) 功夫

Na manhã ensolarada do dia 27 de maio de 1987, Grão-Mestre Leo Imamura [Moy Yat Sang (Mei Yi Sheng) 梅一 生] teve a honra de ser aceito na Familia Moy Yat (Mei Yi) 梅逸. As primeiras palavras de seu líder, Patriarca Moy Yat (Mei Yi) 梅逸 (1938-2001), logo após anunciar sua decisão, soaram como um alerta:

- Que fique claro para você: eu “ensino” kung fu (gongfu) 功夫 e não técnicas de kung fu (gongfu) 功夫.

Esta advertência foi também por Doutora Anne Ching (Cheng) 程, professora do Collège de France, ao escrever em seu livro “Histoire de la pensée chinoise” (1997) que o termo kung fu (gongfu) 功夫 foi popularizado num sentido um tanto redutor pelo gênero cinematográfico do kung fu.

É este “sentido um tanto redutor” do termo que encontramos no entendimento Fruto deste processo de popularização o termo foi até dicionarizado, como podemos ver no Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa (2009), a palavra kung fu (gongfu) 功夫 é definida de modo bem específico, referindo-o como:

Arte marcial chinesa que remonta ao período da dinastia Chou (1111 a.C. – 255 a.C.), simultaneamente forma de cultura física, técnica de desenvolvimento espiritual baseada em exercícios de concentração e instrumento de defesa pessoal.

Entretanto, tradicionalmente na China, este termo era usado de maneira muito mais ampla. Basta consultar o Lin Yutang’s Chinese-English Dictionary of Modern Usage (1973) para verificar como kung fu (gongfu) 功夫/工夫 pode ser entendido:

1. Tempo e energia despendidos num trabalho
2. Grau de perfeição obtido em qualquer linha de trabalho

Doutora Ching (Cheng) 程 parece corroborar com o dicionário organizado por Doutor Lam (Lin) 林, quando escreve que a ideia de kung fu (gongfu) 功夫, na China, está ligada a toda prática ao mesmo tempo física e espiritual e designa o tempo e a energia que se dedica a uma prática com a finalidade de atingir um certo nível, tratando-se de um aprendizado de um saber-fazer que não se transmite pelas palavras.

Esta última parte da fala da Professora Ching (Cheng) 程, - um saber-fazer que não ser transmite pelas palavras -, é um ponto que foi aprofundado por Doutor François Jullien, professor da Université Paris VII, quando mencionou que a noção de kung fu (gongfu) 功夫 dizia respeito à passagem espontânea da dificuldade para facilidade.

Segundo Professor Jullien, a noção de kung fu (gongfu) 功夫 pode ser tomada como “investimento paciente de onde resulta e amadurece a facilidade”.

Assim, esta transformação, que reverte o esforço em seu contrário (a facilidade), é o resultado despercebido de um investimento. Ao fazê-lo, produz-se sem perceber um fruto, sem que se saiba como passou da dificuldade para a facilidade.

Neste investimento que foi feito, algo progressivamente amadureceu, que é o contrário da dificuldade, e faz com que venha por si mesmo.

Doutor Jullien chama isso de “ imanência” e ela chega naturalmente sem pensar.

Para ele, o interessante de tudo isso é que não há um equivalente à noção de kung fu (gongfu) 功夫 no pensamento ocidental, onde não foi analisado o investimento do esforço e sua transformação em seu contrário.

Nas Artes Marciais, esta noção é muito importante e basilar. A partir da execução repetitiva de sequências específicamente elaboradas de movimentos, não se percebe que dela, alguma coisa emerge, fazendo que progressivamente tenhamos facilidade. Isto chega naturalmente sem pensar. Esta transformação é resultado do gongfu, o investimento paciente do esforço acumulado que o tempo reverte em seu contrário e chega por si mesmo.

Na China, a palavra kung fu (gongfu) 功夫 é comumente compreendida como uma habilidade de fazer alguma proeza que as pessoas de modo geral teriam dificuldade em realizar.

Pode-se dizer que qualquer habilidade resultante de uma prática dedicada poderia ser considerada kung fu (gongfu) 功夫. Portanto, há kung fu (gongfu) 功夫 da hospitalidade, da estratégia, da gestão de pessoas, da pintura, docência, da gastronomia, da literatura, da liderança, do empreendedorismo e tantos outros.

De acordo com as pesquisas do Doutor Ngai Pui Man (Ni Peimin) 倪培民, professor da Grand Valley State University, eruditos do Neoconfucianismo [Song Ming Lei Hok (Sung-Ming Lixue) 宋明理學] usavam o termo kung fu (gongfu) 功夫 /工夫 sob diferentes signifcados.

Ele sugere que verifiquemos a obra “Instruções para a Vida Prática” [Chuen Jaap Lu (Chuan Xi Lu) 傳習錄] de Wong Yeung Ming (Wang Yangming) 王陽明 (1472–1529), um dos mais influentes expoentes da tradição confuciana, para se ter uma ideia da extensão do emprego desta palavra:

(1) o kung fu (gongfu) 工夫 (esforço) de aprendizagem [wai hok kung fu (wei xue gongfu) 為學工夫] e o kung fu 工夫 para retificar o coração-mente e cultivar a pessoa [jing sam sau san kung fu (zhengxin xiushen gongfu) 正心修身工夫];
(2) o kung fu (gongfu) 工夫 d’ “O Grande Aprendizado” [Daa Hok Kung Fu (daxue gongfu) <大學>工夫] e o kung fu (gongfu) 工夫 do Jung Yung [Jung Yung Kung Fu (zhongyong gongfu) <中庸>工夫]; kung fu (gongfu) 功夫 como “sabedoria" and "prática" [Ji Haang Yi Ji Jik Si Kung Fu (zhixing er zi ji shi gongfu) 知行二字即是功 夫];
(3) kung fu (gongfu) 工夫 em unidade com bun tai (benti) 本体 formação ou corpo original [bun tai kung fu hap yat (benti gongfu he yi) 本体工夫合一];
(4) kung fu (gongfu) 工夫 como um haau yim (xiaoyan) 效驗 (efeitos, funções e manifestações de certa habilidade ou realização cultivada) e como a função de uma certa formação [bun tai (benti) 本体].

Baseado na constatação da ampla abrangência do termo, Professor Ngai (Ni) 倪 elencou os seguintes empregos para o termo kung fu (gongfu) 功夫/工夫:

(1) esforços dispendidos em algo,
(2) modos apropriados de realizar esforços (empregando tempo) ou instruções particulares sobre como realizar esforços [isto é também o sentido no qual nós podemos falar sobre kung fu (gongfu) 功夫 como uma forma de arte],
(3) incorporação das habilidades resultantes destes esforços, e
(4) as funções das habilidades alcançadas.

No artigo que escreveu “Kung Fu for Philosophers”, Professor Ngai (Ni) 倪 expõe o entendimento de kung fu (gongfu) 功夫 para o grande público, conforme vemos abaixo:

Na arte do kung fu (gongfu) 功夫, há o que Herbert Fingarette, professor emérito da University of California, em sua monografia “Confucius —The Secular as Sacred,” chama a dimensão “mágica” mas “distintivamente humana” de nossa praticidade, uma dimensão que “sempre envolve grandes efeitos produzidos sem esforço, de forma maravilhosa, com um poder irresistível que é por si mesmo intangível, invisivel e imanifesto.”
A abordagem kung fu (gongfu) 功夫 não remete ao “direito do mais forte”.
Esta é uma razão pela qual é mais apropriado considerar o kung fu (gongfu) 功夫como uma forma de arte. A arte não é em última análise mensurada por sua posição dominante do mercado.
Além disso, a função da arte não é a reflexão exata do mundo real. Sua expressão não se restringe à forma de princípios universais e raciocínio lógico, e isso requer o cultivo do artista, incorporação das virtudes/virtuosidades, imaginação e criatividade.

Por sua vez, Professor François Jullien acredita que kung fu (gongfu) 功夫 é uma noção muito implícita na cultura chinesa e, por isso, ela não a explicitou. Os chineses têm uma certa evidência desta noção. É alguma coisa que não se pode explicitar totalmente, daí a sua relação com o sam faat (xinfa) 心法.

Eles não refletiram ainda suficientemente no sentido desta noção, porque ela só pode sair da evidência quando eles encontram o pensamento ocidental.

Alusões são encontradas, frequentemente citadas, mas pouco estudadas.

A noção de kung fu (gongfu) 功夫 não tem equivalente na cultura ocidental. É uma noção que se deve trabalhar, uma noção interessante a estudar agora que é possível de colocar em perspectiva o kung fu (gongfu) 功夫 e consequentemente o sam faat (xinfa) 心法 com as tradições ocidentais que não desenvolveram estas noções.

É encontrando o pensamento ocidental que eles vão perceber que há um implícito pedagógico e assim um recurso de pensamento.

É pela reflexão do Doutor Jullien que vemos a importância de Grão-Mestre Moy Yat (Mei Yi)梅逸, ter relacionado o kung fu (gongfu) 功夫 com a própria vida. Daí o surgimento do termo “Vida Kung Fu (Kung Fu Life)”, hoje mundialmente conhecida como a grande característica do seu legado.